Meu pai uma vez disse que tenho letra de analfabeto funcional


Visito um médico semanalmente. Estou doente, mas nutro grandes esperanças. Talvez dê errado, talvez funcione ou quem sabe não dê em nada e eu fique na mesma. Nunca entendi aquele lance de caminho do meio, talvez seja isso. Pode ser qualquer coisa, não tenho a menor ideia. Penso nisso porque meu médico judeu não consegue acertar o remédio exato para a minha doença e, por isso, vivo uma experiência científica de tentativa e erro. E só obtemos o erro, claro. Um dos remédios me fazia desmaiar o tempo todo. Nada contra desmaiar, tenho até amigos que desmaiam. Já outro me dava enjoos terríveis. Comprei até teste de gravidez já imaginando um feto deformado e viciado em remédios, mas era só efeito colateral. Teve ainda o remédio que deu fome. E não era uma fome ao estilo vou-comer-sete-pedaços-de-pizza-porque-sou-uma-mulher-durona, mas uma fome vou-comer-14-pedaços-e-depois-comer-pães-e-tudo-que-encontrar-até-vomitar-ou-simplesmente-passar-mal.

Confesso que cheguei a comer coisas que não eram comestíveis. Queria comer, a qualquer custo. Apenas comer e nada mais. Só não comi grama porque não achei grama em São Paulo.

Daí comecei a ler As Afinidades Eletivas, como boa pirigoethe que sou, e não entendi nem a introdução do professor x. Tudo bem, eu tenho um plano. Acho que vou cursar uma terceira faculdade: Filosofia. Não tem como dar errado. Trabalho dez horas por dias, mas vou achar um espaço na minha agenda para cursar uma terceira faculdade. Uma decisão totalmente acertada, penso. Com o diploma de Bacharel em Filosofia em mãos, volto a ler As Afinidades Eletivas e tudo acaba bem.

Minto, vou ler agora, já marquei no meu app de leituras. A partir do momento que marco um livro no meu app de leitura, não há como voltar atrás. O destino está selado. Porém, confesso que comprei uma edição em e-book mais bonitinha e com várias notas de rodapé que podem salvar qualquer atrasado mental do abismo. Acho. Depois me perguntem se eu consegui. Vinte mangos o e-book, vão tomar no meio do rabo, fica aqui o meu breve protesto com o preço do livro digital.

Meu médico, que é judeu, gosto de enfatizar que ele é judeu – e entende tudo sobre sofrimento por trazer isso na alma – sugeriu que eu mantivesse um diário parar anotar todas as situações que me fazem mal durante a semana. Ele pediu riqueza de detalhes. Imaginem meu rosto virando lentamente até encontrar o olhar dele com aquela cara VOCÊ-DISSE-RIQUEZA-DE-DETALHES-QUERIDO? Eu escrevo doze parágrafos brincando. Um monte de asneira, mas escrevo. Cacete, como eu escrevo. Mal, talvez. Estou em crise. Agora eu tenho dois diários oficiais. Um diário-diário e outro diário-doença. Ambos padrão FIFA.

Mas baseado nesse evento “ter um novo diário para detalhar aborrecimentos”, tive que comprar um novo Moleskine, claro. Eu só tenho uns 129 cadernos. Evidentemente que essa quantia não é o bastante. Não pode ser qualquer caderno. Porém, como eu estava uns mil reais no cheque especial, decidi comprar apenas um caderno Cícero, que é quase igual, exceto pelo fato de não ser um Moleskine. Uma obsessão minha, pode apontar o dedo e me chamar de consumista, dizer que a marca foi fundada em 1996 e engana seus consumidores. Eu sou isso mesmo. Tenho esse defeito, pegue no meu defeito, dê uma balançada nele. Sou enganada pelas grandes corporações. Não tenho senso crítico. Não sei falar italiano. Não sei escolher boas cores de esmalte.

Enfim, acabei de ligar para a Monique. Monique é a minha gerente. Liguei para perguntar se ela estava bem e para dizer que a minha conta iria estourar. Perguntei se ela tinha um plano. Eu gosto da Monique. Ela me chama de Flor e entende que eu precisava comprar um caderno novo. Ela diz que o banco em que ela trabalha quer realizar os meus sonhos. Legal. Manda o gerente vir aqui ler Goethe comigo.

Eu tenho vários amigos e amigas em São Paulo agora, tipo, umas quatro pessoas. Penso em dar uma festa. Talvez eu até chame o meu médico. Eu gosto dele, acho que ele deveria usar uma capa de Super-Homem pelas ruas e sair gritando “eu salvo pessoas”. Esses dias ele disse algo muito simples: “Taísa, ninguém é melhor ou pior do que você, vai lá, arregace as mangas, acabe com esses filhos da puta”. Ele não disse o palavrão, claro.

Saio completamente inspirada das consultas, digo que vou seguir com a rotina planejada. Conto que tenho escrito bastante, que tenho um caderno para cada personagem do romance que comecei a escrever em março, mais os diários, mais as anotações que faço no celular, mais as coisas que escrevo em lugares não oficiais como livros, bloquinhos de repórter, revistas, jornais e mão. Quem nunca escreveu nada na mão, não é mesmo?

Estou começando aos poucos, muito aos poucos, a voltar para a academia. Malhar realmente libera paradas no cérebro, é verdade, eu comprovei. Nada comparado a tomar uma (ou doze) cervejas, mas alguma disposição você tira de lá (da academia de ginástica, não da cerveja). Estou disposta a ter disposição. Vejam só que frase ricamente construída.

Minha vida deu uma nova guinada, após tantas, dirão vocês. Hoje, dia seis, inauguro uma nova fase. Fui lá, cortei a fita vermelha e inaugurei a nova fase. Estavam presentes o prefeito e várias autoridades da cidade. Lá ficou resolvido que vou pensar em mim e na minha saúde antes de qualquer coisa ou qualquer pessoa. E, tendo isso em mente, irei me afastar das pessoas que não estão dispostas a me apoiar na minha longa, ou talvez breve (é bom sonhar), jornada pelo fim da depressão severa. Ou seja, aquele cabeleireiro que diz “esse loiro te deixa muito pálida, com a cara toda cagada” já está fora do meu círculo social.

Dormir cedo e acordar cedo. Tomar mais chá. Aceitar que vinho é uma bebida alcoólica como qualquer outra e não algo bom para a saúde em supostas pequenas doses. Comer mais castanhas. Comer salada e frutas no inverno. Jogar o celular no lixo. Ler As elegias Eletivas nesse fim de semana. Ler uma poesia por dia. Comprar uma mochila para carregar tantos cadernos. Uma mochila bonita e não fluorescente e esportiva como a que eu tenho agora. Andar de bicicleta todo domingo na ciclofaixa porque tenho medo de andar na rua. Correr no Minhocão.

Estudar assuntos que não sei. Ler diariamente os dois jornais que assino. Ler as revistas que assino. Ler as revistas que compro. Parar de jogar sintomas no Google e a me diagnosticar com câncer. Comprar panelas. Fazer sopa de mandioquinha. Aprender a fazer sopa de mandioquinha. Jogar revistas velhas fora. Jogar papéis fora. Parar de usar cheque. Conversar com a Monique na segunda. Comprar fita para a minha máquina de escrever. Comprar uma orquídea. Cobrar dinheiro das pessoas que me passaram frila no passado e esqueceram que eu existo.

Ler livros em Francês. Ler pelo menos as manchetes do Le Monde. Fazer os exercícios da minha classe de Francês. Não perder tempo com texto polêmico da internet. Comprar uma pantufa. Ir mais à Biblioteca Mário de Andrade. Passar hidratante no inverno. Estudar matemática básica. Não morrer de tédio nos mercados. Parar de odiar mercados. Usar os óculos de leitura. Marcar oftalmologista. Passar colírio. Dançar sozinha no quarto. Trabalhar muito. Mostrar que sou capaz de fazer boas reportagens. Descobrir locais noturnos para me divertir em São Paulo que não sejam o Morrison Rock Bar. Convidar amigos para irem comigo. Ir sozinha é saudável, mas companhia não machuca ninguém. Não ficar sozinha o tempo todo. Fazer mais amigos. E mostrar aos que tenho o quanto gosto deles.

Preciso ainda convencer a minha roommate a adotar um cachorro bem pequeno, mas tão pequeno, que ela nem vai ver ou notar o cachorro. Preciso pensar num plano para que isso aconteça. Ter um cachorro é muito caro nos dias de hoje. Quando eu era pequena tinha vários ao mesmo tempo, fora os gatos, eu os amei tanto. Céus, como eu os amei. Eu mereço um bichinho, porém, acho que não tenho salário para isso. Eu não tenho dinheiro para nada, aliás. Podem perguntar para a Monique.

"Viver para odiar uma pessoa é o mesmo que passar uma vida inteira dedicado à ela"
(Guimarães Rosa)

6 comentários:

Thays disse...

Eu estava com saudades de ler um texto teu rindo a cada parágrafo.

Espero que esta fase seja breve e efetiva. ;*

Sporo'spam disse...

Eu li dois posts e gostei muito. Vc ê uma metralhadora de emoções

Sporo'spam disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Taísa disse...

Eu gosto quando vocês comentam.

Teco disse...

"Comprar fita para a minha máquina de escrever"? Gostei muito das suas "notas do submundo"

Thiery Peleias disse...

Realmente estava na dúvida se era um diário ou um blog de pequenas crônicas.... mas o importante é a ótima qualidade!