Quando procurei ajuda, tudo mudou. Não pela felicidade, que
não veio, mas pela consciência de quanta tristeza estava sentindo. Percebi que
só me via como vítima, sem nenhum poder diante das mais variadas situações. Acreditava
que o mundo me devia algo. Se do pão que o capeta amassou já tinha comido até
as migalhas, nada mais justo que exigir desse mundo uma reparação. Entretanto,
essa reparação nunca veio e nunca virá. Assim como todos, continuarei levando Porrada & Bomba.
O que mais me machuca é quando alguém pergunta se sou modelo, se sei que pareço com a Barbie. Ou ainda quando alguém
torce o nariz e diz “Ah, você cobre celebridades, né?”. No lugar de dizer
“Queridinha, fiz duas faculdades, falo quatro idiomas, li mais livros que dez
gerações completas de parentes seus e dei duro para chegar onde estou. E mais,
qual o problema do meu trabalho?”, eu fico em silêncio. Só que não é um
silêncio de mulher bem resolvida e segura de si. Morro por dentro porque me
sinto humilhada. Sinto que sou menor
que as pessoas ao meu redor, principalmente pela minha aparência física (Oh, mundo cruel, eu sou bonita demais!). Expor
minha frágil trajetória de vida de forma pedante só mostraria o quanto eu não
me garanto, o pouco que me valorizo.
Vinda lá do interior do Paraná, provei comida japonesa pela
primeira vez aos 18 anos. Achei horrível, diga-se. Fui ao McDonald's com 14 e
ainda guardei a caixinha da batata frita dobrável no meio do meu diário. Quando
conheci um avião por dentro, já tinha idade para beber nos Estados Unidos. Por
isso, e por tantos outros exemplos, sempre fui uma ressentida, uma invejosa,
uma carente, uma pobre de dinheiro e de espírito diante de todas as coisas que
eu não tive. Não só coisas, mas relacionamentos, sensações, cursos no exterior,
viagem para Disney aos 15 anos, pai não-alcoólatra, essas coisas que toda
menina saudável quer. Vocês são melhores, vocês venceram. Hoje sou eu quem paga
mil reais de psicoterapia todo mês.
Como muitas pessoas, tive que passar por momentos sofridos e
dolorosos na minha infância e adolescência. Mesmo que inserida dentro de uma certa
classe média interiorana, fui privada de muitas coisas que eu julgava como
minhas por direito. Poderia dizer que meu ressentimento nasceu comigo e me
tornou uma pessoa orgulhosa e de ambição sem limites. Ambição, ambição,
ambição, ambição. Eu precisava mostrar para eles. Eles quem? Aos doze,
decidi que gostaria de escrever livros. Meu pai disse que era possível escrever
em revistas e jornais também. Estava decidido. Escolhi ali minha profissão.
Minto, teve uma época em que quis muito cursar História,
matéria na qual me descobri como pessoa e entendi o mundo em que vivia. Estudar
o material escolar dessa disciplina me fez entender porque minha mãe me batia
quando eu lavava a cabeça estando menstruada ou quando comia manga com leite,
por exemplo. Ter uma visão um pouco além daquela minha pequena cidade e família
me fez ver – e também odiar – apanhar. E como apanhei. Apanhei até quando a
minha prima de 15 anos, atenção para essa frase, a minha prima de 15 anos e não
eu, havia engravidado. Como eu engravidaria se eu lia a revista Capricho
quinzenalmente? Antes de isso virar um problema da geração Y, eu já era uma
pessoa sedenta por informação. Lia as eras de Hobsbawn como quem lia Harry
Potter.
Por um longo tempo fui obcecada pela Segunda Guerra, estudei
tanto que poderia dar palestras, acho. Porém, nada supera os sete livros da saga
Harry Potter na minha formação, confesso. Acho lindo quem fala que aos oito
anos descobriu em Goethe a alegria para viver, eu, porém, só fui descobrir o
valor desse último aos 21 anos. Hoje qualquer um lê A Divina Comédia com 13, Eneida com 14 e Ulysses no cursinho. Por
que quando alguém diz que está lendo O retrato do artista quando jovem diz estar ‘relendo’? Acho que foi o Ítalo
Calvino que disse que clássico é todo aquele livro que a pessoa diz estar
relendo. Sei lá quem disse. Bem, foda-se, nunca li A divina Comédia. Nunca li O Jogo da Amarelinha, Ulysses,
A Condição Humana e por aí vai.
Entretanto, li depois de adulta muitos outros romances.
Romances que foram meus amigos e formadores. Relembro cada um deles com algum carinho
e dor – já que algumas leituras nos destroem para sempre. Destaco Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister,
O Jovem Törless, A montanha Mágica, Doutor Fausto... Céus, nunca fui para a
Alemanha, que ódio, que vontade de morrer. É cada idiota que vai para a
Alemanha, não sabem de nada, compram um pedaço do muro de Berlim e ainda postam
no Facebook crentes de que estão abafando. “Minha viagem foi incrííível, ver os
dois lados de Berlim é muito surreal, nossa, fora aquela balada x que ficava no
bairro y”. Inserir uma imagem do Grumpy Cat aqui.
Mas voltando, quando alguém me compara com a boneca Barbie, sou
um corpo, uma imagem, algo a ser admirado ou penetrado. Mas o que é a beleza, não é mesmo? O privilégio branco? Aliás, vou até retirar o
questionamento: beleza não é uma questão. Se eu tivesse um megafone, gritaria
alto para todo o mundo ouvir que eu não sou só um corpo que parece ou não com uma
boneca. Sou um ser humano inteiro, completo, que está aprendendo a se admirar e
a se conhecer. Não sou menor ou maior do que ninguém. O meu transtorno de
ansiedade e a minha depressão vêm do medo de não ser suficiente.
Não preciso ter medo da menina Y que fez seis intercâmbios diferentes
bancados pelos pais, viajou para mais de 20 países e adora um festival de
música na Califórnia. Ela não vale mais do que eu. Ela também não vale menos. Se
estivermos numa mesa de restaurante, ela e eu, posso ouvi-la e quem sabe até fazer
uma nova amizade. Por que guardar rancor e achar que sou a grande injustiçada
do Paraná? “Você tem 27 anos e ainda é Repórter II?”. Sim, escolhi sair da
empresa Z e ir para a empresa W para ganhar menos por acreditar no meu emprego
e na minha carreira. Tenho a impressão de que hoje todo mundo quer te agredir
por alguma coisa. Aprendi, depois de anos de rancor e pensamentos
destrutivos, a parar de culpar os outros.
Aprendi ainda que para falar francês fluentemente, vou ter que
pagar o meu próprio curso, com o suor do meu emprego que você esnoba como se
não fosse nada. Que se eu quiser visitar os principais museus do mundo, vou ter
que visitar pelo Google Maps. Que se eu não tive as mesmas oportunidades que
outras pessoas, elas não são melhores do eu e o mundo é injusto e mau. Aliás, o mundo é injusto e mal. Vale lembrar que o Brasil não é nem uma república racial. Porém, não entremos nessa, não hoje. Na
verdade, as pessoas não deveriam ter escalas de valores. Fulano vale isso,
fulana vale aquilo. Porém, antes de fazer um tratado sobre o valor da
humanidade, estou numa dura, duríssima, durantéééééé-éééé´-zima, caminhada em
busca da minha verdade. Do quem é Taísa e do que ela é capaz.
Quando escrevo, sinto que posso levitar. Ou, dependendo do
que faço, sinto uma adrenalina louca, algo como tarja preta com whisky, nem sei
explicar direito. Gosto de ser uma romântica e acreditar que tenho uma vocação.
Eu tenho uma vocação, taí, não custa repetir. Se olhe no espelho e repita “eu
tenho uma vocação”. Eu sei escrever. Eu amo escrever. Eu escrevo todos os dias.
É a minha religião. É a minha forma de conhecer a face de Deus e de entender o
quanto certas coisas não são importantes. Quando alguém, mais uma vez, me
agredir através da minha aparência física, seja numa tentativa de estupro, numa
cantada, na comparação com uma boneca, vou levantar a cabeça e dizer um sonoro
‘Não’. Não sou isso.
Esses dias, vejam só, decidi comentar que não queria mais
viver, que não valia mais a pena. Foi um escândalo. O psiquiatra teve um treco,
meu namorado teve outro treco, meus familiares que estão lendo esse texto vão
ter outro treco, todo mundo vai me ligar e gritar comigo. Gritem. Eu geralmente
espero as pessoas pararem de gritar e vocês? Antes eu gritava muito, hoje já
não grito tanto, não discuto com ninguém. Nessa minha jornada em torno de mim
mesma, descobri coisas dolorosas, anos de abuso físico e psicológico que foram
duros e que, entretanto, não representam mais quem eu sou. As marcas ficam,
porém. Eu gosto das minhas marcas, olhem para elas, elas estão nesse texto.
Não sou uma vítima. Não sou mais uma vítima. Nunca quis ser
uma. Foi por isso que me matei de estudar, acho. Li até meus olhos sangrarem.
Fui atrás de assuntos que nunca me explicaram, nunca tive medo de digitar um
simples “o que é existencialismo?” no Google. Nunca tive vergonha de começar na
filosofia com o livro Convite à Filosofia da tia Marilena Chauí, que eu acho ótimo, diga-se. Busquei pela
formação que julguei ideal e infelizmente ela passa longe da Sorbonne. Porém, é
tudo que tenho. Eu me agarro a tudo que tenho com todas as forças. Aprendi
ainda a tirar o melhor de todas as situações a que tenho acesso.
Quando tudo me faltou, amor de mãe, de amantes, de
amigos, eu tive a literatura. Ali eu tive tudo. A minha vida é literatura. Passo
horas lendo a mesma frase de um livro, faço isso até que ela faça parte de mim.
O Ariano Suassuna, aquele belo senhor octogenário que deita no chão dos
aeroportos do Brasil, nunca viajou para o exterior. Disse que sempre que sentia
vontade de conhecer a Espanha, lia Dom Quixote e a vontade passava. Não é lindo
isso? Não é lindo conseguir viver com pouco e não ter grandes ambições? Talvez
um dia eu encontre a mesma tranquilidade.
Viver é de uma beleza incrível quando você decide que não
precisa conhecer todos os países, ler todos os clássicos e emplacar grandes
pautas diariamente. Estou aprendendo a querer menos. Tem um livrinho bobo do Alain de Botton que se chama Desejo de Status e lá tem várias lições
legais. Se você estiver com seus vinte e poucos, talvez seja de uma grande
ajuda.
Você quer escrever por qual motivo? Quer a fama? Quer provar
que não é boneca Barbie? Quer dinheiro? Dificilmente isso virá. Quem escreve,
precisa escrever. Simplesmente precisa. Parece bobo e mais um clichê enorme,
mas, no fim das contas, é isso. Nada proporciona mais alegria do que o papel
sendo agredido pelo grafite (dedos fortes no teclado também contam). Essa,
inclusive, será a única agressão que deixarei que chegue até mim. Alguns dias
nos levam ao chão outros nos deixam eufóricos. Os seres mais deprimidos dessa
Terra são os que mais sentem vontade de viver e os que mais conseguem ver a
beleza das coisas, acredito. Eles só precisam atravessar a dor. Ou transformá-la em arte.
"Minha mãe sempre vestiu minhas irmãs como bonecas, porque em última análise também sempre as tratou como bonecas e provavelmente, isso não é exagero, pusera suas filhas no mundo como bonecas, não como seres humanos, mesmo quando adulta ela ainda quis ter uma ou várias bonecas. Suas filhas nunca foram outra coisa senão bonecas para a sua paixão lúdica, por isso ela nunca as largara da mão e sempre elas tiveram de reagir e obedecer como bonecas e como bonecas ela as vestira e alimentara e levara passear todo santo dia e à noite as pusera na cama. Ainda aos quarenta essas bonecas, minhas irmãs, submetem-se a esse instinto lúdico de sua mãe, penso. Mas também meu irmão a vida inteira só levou uma vida de boneco, ele foi por assim dizer o polichinelo de minha mãe, desde o início ela o criou como uma espécie de marionete de reserva para o dia em que seu marido, o marionete titular, lhe faltasse. Para minha mãe, com sua mania por bonecas, minhas irmãs eram de fato bonecas falantes que ela, quando quisesse, podia fazer rir ou chorar, que podia escorraçar quando quisesse, podia chamar de volta quando quisesse, vestir e despir quando e como quisesse, se seu marido, meu pai, e meu irmão, seu filho, eram marionetes cujos fios ela puxava a seu bel-prazer" (p. 92, Extinção, Thomas Bernhard)
9 comentários:
Que maravilha, Taísa!
Pena que na verdade contém sentimentos e experiências ruins. Quando eu era criança eu assisti o "Minha Vida de Cachorro" e o menino estava na merda porque tinha perdido a mãe, e para se consolar ele comparava a situação dele com a da cadela Laika, que foi mandada na missão espacial russa nos anos 60. E assim ele se sentia melhor. Eu sempre pensei naqueles que estão pior para ficar bem e foi funcionando para mim. Mas pensando bem, isso também é uma merda.
PS: minha prima tem quatro filhos, começou com 17 anos.
beijo, não se sabote.
Sobre querer o mundo e, ainda, fazer ele pagar os débitos imaginários que ele contraiu, somos dois, talvez mais. Também tenho me esforçado para deixar isto pra trás. Talvez ser assim seja parte do pacote de quem tenha nascido no Brasil e educado em colégio público. Talvez.
ótimo texto.
Abraço
Obrigada, Gabriela. Por sempre me ler e falar coisas coerentes, menos quando a assunto é Morrissey, claro.
Não me sabotarei.
Incrível, forte, honesto e talvez um dos melhores que já li aqui no seu blog. Não pare nunca, por favor.
Szabaturinha, toda vez que leio você lembro do Fante. Vc tem muita coisa, dearest. Emprego (bom), terapeuta e professora de francês. O resto é resto. Ah, e você tem o principal: repertório e gosto pela literatura. Um amigo meu diria: "Vai que vai" :)
Taísa, quanto ao Morrissey, vai te ajudar em tudo pelo menos reconhecer que o ídolo perdeu quase todo o mojo. Quase.
Concordo com o Fernando: um dos melhores textos que já li aqui. Acho que porque me identifiquei com algumas das experiências/sentimentos descritos. Me comoveu. Você é uma escritora fantástica.
O problema é a escala que impomos pra gente. Adorei o texto... conheço bem esta história de achar que o mundo está te devendo algo e melhor ainda a de não se sentir digna deste mesmo mundo! A batalha é diária!
Força!
"Quem escreve, precisa escrever. Simplesmente precisa. Parece bobo e mais um clichê enorme, mas, no fim das contas, é isso. Nada proporciona mais alegria do que o papel sendo agredido pelo grafite (dedos fortes no teclado também contam). Essa, inclusive, será a única agressão que deixarei que chegue até mim. Alguns dias nos levam ao chão outros nos deixam eufóricos. Os seres mais deprimidos dessa Terra são os que mais sentem vontade de viver e os que mais conseguem ver a beleza das coisas. Eles só precisam atravessar a dor. Ou transformá-la em arte. "
Eu preciso escrever porque preciso. Gostei muito de ler seu texto. Very inspiring.
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