Dirão vocês, sem dúvida: em que universo limitado teve de se formar essa jovem!

O mundo ao seu redor está em chamas e você nota um pequeno detalhe na sua cadeira giratória da firma. Duas entrevistas para fazer, sugestões de pauta para dar, checar informações que você já checou oito vezes e depois rechecar mais umas 29. Corro atrás de tudo como uma louca, nariz escorrendo, limpa o nariz, toma água, vai na máquina de café, volta, senta, respira e aquela pecinha quebrada no braço de apoio olhando diretamente nos meus olhos. Seria preciso resolver isso primeiro e só depois ir atrás de x, y e z. É impossível trabalhar com uma cadeira quebrada.

Digo, uma cadeira com uma pequena rusga no braço de apoio esquerdo. Depois de muito caminhar pela redação, consigo um tubo de Superbonder e decido colar a cadeira. O Superbonder não pega e eu meleco toda a cadeira de (pausa no texto para fazer a entrevista 1, falar com a minha editora sobre a entrevista 1 e decupar o essencial da entrevista 1).

Volto para a minha mesa, olho para cadeira e vejo que peça segue um pouco móvel, mas como recebo um email por segundo, acabo me distraindo. A entrevista número 2 segue um parto e ninguém atende ao maldito telefone e a última coisa que pretendo é chegar na mesa da chefia com um “não consegui falar com y”. Eu preciso de um plano. Decido passar lenços umedecidos em toda a minha mesa, telefone, monitor, mouse. É impossível trabalhar num lugar sujo.

Liga para assessor, para o cunhado da sogra, conta uma história emocionante sobre como você conseguiu um emprego novo, sobre como você precisa dessa informação, que há dez anos você estava jogando milho para as galinhas no interior do Paraná e que agora trabalha na revista z e precisa dessa matéria para ser feliz. A pessoa se solidariza, oferece ajuda, pergunta o nome nas galinhas, se eu quero alguma ajuda financeira, se pode mandar um bolo de cenoura para a redação.

Corta a cena. Preciso fazer 17 exames de sangue. Para isso, 12 horas em jejum. Tudo bem, não há comida em casa, não há dinheiro, talvez um hambúrguer de soja vencido no congelador? Quem poderá saber? Amanhece e decido ir a pé ao laboratório, afinal, segundo o Google, a distância é de 950 metros. Coisa de minutos, tiraria de letra. Percebo no chuveiro que não estou muito bem e decido tomar banho de cócoras. Coloquei todos os xampus no chão e fiquei no meu mundinho rasteiro até me sentir limpa.

Um pouco zonza, nada demais, saio de casa e começo a andar os meus novecentos e cinquenta metros decidida a descobrir um novo rol de doenças para chamar de minhas. De repente, tudo fica preto. Encosto num muro e apago. Volto da escuridão com dois estudantes universitários querendo saber se a moça estava bem. “Eu preciso de um pouco de açúcar”, respondo sentada no chão. Não tinha andado nem 300 metros! Ainda sentada no chão garanto a todos que estou bem, abro a bolsa, como uma barra de cereal com uma plateia pouco convencida da minha saúde, espero cinco minutos, levanto e volto pra casa. Decido ir ao psiquiatra após comer um pedaço de pão (principalmente a parte que não continha bolor).

“Taísa, você se dopou de novo?”, não eu estava apenas com fome, mas já passou. Conto que não deu muito certo a ida ao laboratório, mas que eu tenho um plano. “Taísa, você precisa parar de fugir das suas obrigações”. Passam dias, vou de carona, faço os exames, pego os resultados e não tenho absolutamente nada. Nem uma anemiazinha. Pura saúde de mulher de ferro. Nem um tremor irritado da minha glândula da tireoide que sempre me lascou. Nada.

Fico terrivelmente triste, nesses exames eu esperava encontrar a razão dos meus problemas. Aparentemente tudo é depressão ou transtorno de ansiedade. Quase seguro meu psiquiatra judeu ultra limpo e bem arrumado pela camisa social extremamente bem passada para dizer “escuta aqui, eu consegui tudo que eu queria na vida, tudo, até a porcaria do livro estou escrevendo, porque essa melancolia idiota?”, mas falo qualquer bobagem sobre a minha mãe e o fato de ela não ter me amado.

No limite das minhas forças, decido ir para Santa Catarina (de ônibus) para relaxar e curtir a companhia dos pinschers da minha mãe. Eu os amo. Meu coração explode em um milhão de cores com cada latido, lambida e jato de mijo. Como pode existir um amor tão grande como esse no universo? Vou à praia, ao veterinário, uso chinelos. Minha mãe paga salão de beleza, faço as unhas, saio com a amiga dos tempos da faculdade, dou risada e volto para São Paulo porque, infelizmente, amo a minha profissão e a cidade que escolhi para viver. Amo escrever, os pinschers, minha bicicleta, meu livro de 700 páginas-sem-fim, o Moleskine de oitenta reais que eu comprei no cheque especial porque toda menina precisa de um caderninho.

Agora tenho muitos eventos sociais e nunca mais tive a oportunidade de passar todo um fim de semana de pijama (geralmente sujo de molho de tomate/Doritos/chocolate). Deus, quanta nostalgia sinto daqueles dias recheados de nada. Quanta alegria numa simples calça de moletom. Lágrimas surgem em meus olhos e eu me imagino nesse tempo frio debaixo das cobertas, mas é preciso sair de casa e ir a treze casamentos. Não passei sete anos reclamando que não tinha amigos? A partir de hoje reclamarei ao contrário.

Outra: acho que matei o coitado do Gabriel García Márquez. Nunca tinha lido Cem Anos de Solidão e escondia essa pequena vergonha literária sempre que surgia o tema “literatura latina” nas conversas de bar com 'intelectuais'. Vejam, fiz Letras e Jornalismo, ter renegado esse clássico no meio da minha trajetória escolar é meio humilhante, dizem. Numa breve manipulação mental, fiz meu namorado comprar o livro para ele e peguei emprestado. Que grande choque, que arrebatamento, que loucura, que porra foi aquela? Estou até agora paralisada pela impressão que o livro me causou (todo mundo fala a mesma coisa, acho, não sou original, sorry). Uma semana depois da última página, morre o escritor. Ué?

Apesar de ter lido as obras jornalísticas na faculdade e aquele bizarrão das putas tristes, nunca tinha tido tempo para entrar na vida dos Aurelianos. Fui tão tonta. E, para não repetir a dose, comprei (eu mesma, por SETENTA REAIS) O Amor nos Tempos de Cólera, que também não li. Porém, não há previsão de quando ele vai entrar na minha planilha do Excel de livros a serem lidos. Estou numa fase de imersão na escrita, acho. Entretanto, deixo o recado, o próximo a morrer será o Günter Grass. Que gênio, é vergonhoso tentar escrever depois de lê-lo, o que acontece com os escritores alemães? Meu deus, esse não é um parágrafo sobre a supremacia literária alemã, antes falei do meu psiquiatra judeu, nossa, vou apagar tudo. Esse é um parágrafo sobre os setenta reais que gastei num livro, o resto é mentira e distorção dos fatos.

“Mas sempre que, como os sábios, voltava as costas aos livros, declarando-os sepulcros das letras, e procurava contato com gente comum, encontrava o pequeno batalhão de canibais que vivia em nosso edifício e, depois do breve contato com eles, sentia-me realmente feliz ao voltar a salvo a meus livros” (p. 115 – O Tambor, Günter Grass)

2 comentários:

jxz disse...

<3

Genoveva disse...

Tenho a impressão de já ter lido vc desmaiar de fome antes, pode não...e que papo é esse livro? já quero <3