Se um dia eu aparecer vestida com uma legging de oncinha atire pra matar

Meu analista disse que eu só posto fotos dos meus vinis no Facebook para sustentar uma imagem. Eu olho bem séria para a cara dele. Para postar fotos de amigos felizes eu precisaria de amigos felizes, meu caro. Eu até deleto o Facebook se for para ganhar alta. Não que eu odeie o meu analista, ele, além de sua formação como psicólogo, também sustenta um diploma de jornalista. Sempre tentei perguntar sobre essa segunda graduação, mas ele disse que o objetivo é falarmos sobre mim. Ficou até desconfiado, queria saber como eu descobri esse lance dele com o jornalismo. Falei apenas que eu não era a única na sala tentando sustentar uma imagem no Facebook. 

Voltando ao vinil. Não nego que esteja sustentando uma imagem, mas eu gostaria de sustentar uma nova imagem, a imagem de uma guerreira que faz tudo para ter certos discos. Postar a foto no Facebook é ser o gato que traz o rato para mostrar ao dono. Olhe esse vinil do Dylan, eu mesma matei. Com sorte, quatro pessoas curtirão. Dedilhar pilhas de discos não é uma atividade prazerosa e fico cada vez mais deprimida quando me dou conta de todos os exemplares que não tenho. Como o mundo virou um lugar muito moderno, algumas lojas de vinis fazem propaganda dos discos novos do acervo pelo Facebook, mas não os vendem pela internet. É horrível largar tudo que se está fazendo e correr para as lojas do centro de São Paulo. Esses dias pisei de sandália no vômito de alguém na rua Barão de Itapetininga. 

Tenho trabalhado tanto, mas tanto, mas tanto, que nem sei medir o quanto. Nem quando eu servi de mão de obra barata num resort de luxo no caribe eu trabalhei tanto, nossa, mas tanto, que nem tenho tempo de abrir a tampa da vitrola e parar para ouvir alguma coisa. Eu meio que comecei a trabalhar de novo, mas não me identifiquei com o meu trabalho novo e pedi para sair, mas ainda não saí. Tenho abraçado vários trabalhos como freelancer e as pessoas têm sido bem legais comigo. Chegaram até a me pedir para escrever profissionalmente sobre o Morrissey. E parece que vão até me pagar por isso.

Acho que estou escrevendo melhor do que no passado, descobri ainda, que quando bebo, os textos ficam com mais fluidez e recursos de estilo. Fico feliz que exista um aplicativo no celular em que eu possa comprar bebida sem precisar falar com ninguém (entretanto, preciso me vestir para pegar na portaria). A cerveja Itaipava é a mais barata do cardápio, mas você precisa gastar pelo menos trinta reais e o motoboy chega carregado. A chata da síndica que está cobrindo um porteiro faltante aproveita para me dizer um "maneire na festa, mocinha!". Nossa, que cretina. A última vez que fiz uma festa eu tinha nove anos e a decoração era "fundo do mar". Pedi uma fantasia de sereia para a minha mãe, mas não ganhei e usei uma roupa normal. Daquele dia em diante meu rancor só cresceu.

No último domingo, depois de várias visitas do motoboy ao meu prédio, meu corpo finalmente sucumbiu e fui parar no hospital com a garganta e o ouvido em chamas. Gasto o valor de dois vinis importados em antibióticos e admito para mim mesma que preciso mudar o meu estilo de vida. Para absorver Ferro, consumo muito vegetal de folha escura com suco de laranja, fico mastigando a rúcula e bebericando o meu suquinho com uma cabeça cheia de coisas para pensar. Mastigando e pensando, mastigando e pensando, mastigando mais do que pensando.

Quanta linhaça eu preciso comer para ter um bom estoque de ômega 3? Começo a tomar vitaminas, abandono a farinha branca, me imagino de legging e tênis de ginástica, faço orçamento na academia. Com o preço da academia poderia voltar a fazer piano. Provavelmente eu não tenho dinheiro para nada, mas faz muito tempo que parei de conferir meu saldo. "Moça, seu cartão não passou" virou o único termômetro das minhas finanças. Preciso comprar um biquíni, quero muito um cachorro. Será que consigo fazer luzes no meu cabelo sozinha?

Fico arrasada com a morte do Lou Reed e decido fazer uma tatuagem, chego a colocar o desenho no corpo, mas desisto, já basta aquela tatuagem que removi em 2011. Preciso aprender a cozinhar, mas não tenho dinheiro para comprar panelas. Preciso de uma impressora, eu escreveria melhor se tivesse uma impressora, faço pesquisas para encontrar o melhor preço, mas desisto. Compro uma máquina de escrever numa feira de antiguidades. Penso que eu deveria ter um filho, mas sou hipocondríaca demais para engravidar acidentalmente e nunca acharei o momento certo na carreira para fazer isso de forma planejada. Aliás, que carreira? Eu mal tenho um emprego. Acho que eu deveria aproveitar esse período para passar cinco semanas no Canadá estudando francês. Faço até o orçamento, mas desisto. É difícil planejar uma viagem internacional sem olhar o próprio extrato. 

Olho no espelho e digo para a minha imagem que nunca mais vou comprar um livro até que os últimos quarenta e seis que eu comprei sejam lidos em suas totalidades. Claro que não cumpro. Com um iPad em mãos reflito sobre esse lance de e-book, compro alguns, mas não consigo chegar a nenhuma conclusão. Leio livros para matérias, releio livros que já li, mas mal tiro os novos de suas sacolas e sinto que preciso de alguma forma de punição. Nunca mais vou sair de casa. Só vou sair de casa para ir à academia. Vou reler todos os meus livros do Thomas Bernhard. Como será que posso escrever melhor? Quando será que eu vou parar de ter acne? Tem uma idade que o seu corpo percebe que você já saiu da puberdade e fala "Ok, chega de acne pra você"? Eu escreveria melhor se não passasse horas no espelho me espremendo. Acho que vou começar outra faculdade ano que vem. Ou será que faço uma pós-graduação? Eu realmente quero um cachorro. Eu deveria ter nascido em 1975, é tão angustiante fazer parte da geração Y. Somos um bando de idiotas, suspeito.

O meu rosto está sempre coçando e o meu cabelo está sempre atrapalhando o meu rosto. Atualmente sou uma pessoa cheia de manias e tiques, tremendo da cabeça aos pés, roendo apenas uma das unhas das mãos. Aliás, eu passei a adorar o cheiro das minhas próprias mãos (!) e não consigo parar de cheirá-las. Cadê a Taísa loirinha, com vestido de camponesa, correndo pelos campos floridos? Talvez a fofura seja impossível para as mulheres, que assim como eu, calçam 39 e são obcecadas pelas próprias mãos.

Eu não estaria nesse estado emocional se tivesse feito como todas as minhas amigas do ensino médio. Elas casaram antes dos 22 anos por vontade própria, adotaram o sobrenome do marido e cursaram faculdades como Farmácia, Fisioterapia ou História. Minha maior mágoa é não ter cursado História. Brincadeira, tenho mágoas bem maiores. 

5 comentários:

Júlio Sandes disse...

Os 22 estão se aproximando e ainda não casei, como lidar com isso?. E tenho a nítida sensação de que você teria um estoque de mágoas muito parecido ou até mesmo maior se tivesse feito História. Been there, done that.

Anônimo disse...

Olá Taísa, vc é muito talentosa, qual o seu email de contato?

Taísa disse...

szabatura@gmail.com

Unknown disse...

Conheci teus textos na Trip e vim aqui ler...adorei teu estilo. Esse post foi demais. Vou ler com mais frequencia. Parabens

Unknown disse...

Ah, essa de roer so uma unha ta otima, rsrrsrss.