Eu ainda tenho fôlego para escrever poemas tão azedos quanto os de Pasolini

Devo perder a audição em seis meses. Não mais que isso. Porém, enquanto a surdez não chega, ouvirei música. Ouvirei Tchaicovsky no último volume e ouvirei até a chata da Madonna. Eu só não quero estar ciente dos meus pensamentos. Pare um momento, olhe para a minha frustração, pegue no peitinho dela, pegue no joelho dela, desça mais um pouquinho. Eu deixo a frustração ser parte de mim. E eu gasto dinheiro com muita porcaria, vocês bem sabem, mas nunca me arrependi de ter comprado esse fone de ouvido. Mal consigo ouvir as dores da minha alma. Não é maravilhoso? 

São três da manhã de uma terça-feira e eu trabalhei como uma desgraçada. Quantas matérias estou tocando ao mesmo tempo? Eu já nem sei. Sou uma jornalista desempregada que vive de trabalhos como freelancer, ou como dizem no meio, sou frila. Não sei como explicar, mas talvez eu faça uma camiseta com "I Love CLT" com a tinta do meu próprio sangue. Essa incerteza toda não faz bem para a minha tireóide. Quantos nãos um adulto saudável consegue receber por dia e sair ileso?

O momento é de economia total, mas como você é uma daquelas jornalistas com um forte ímpeto literário, você compra muitos livros; nem sempre os lê, é verdade. Na Livraria Cultura, com o dinheiro mais que contado, você cisma que precisa sair de lá com 'O Tambor', do Günter Grass. Afinal, ele está na sua listinha há anos. Por que não agora? Talvez agora seja uma boa hora, talvez ele mude tudo. 

Resolvo ler o primeiro capítulo na livraria para evitar qualquer remorso. Livros com mais de setecentas páginas exigem algum planejamento. Com o primeiro parágrafo levei um soco no estômago. Na segunda página já tinha dois dentes a menos e estava sangrando no chão do Conjunto Nacional. Quem bate é o próprio escritor, um nazista violento que arrebenta a sua cara porque sabe que você nunca, mas nunca, nem nos seus sonhos mais solitários e juvenis, escreverá bem daquela maneira. Ler aquele capítulo foi ofensivo, uma humilhação que eu não esperava passar agora que estou tão fragilizada. Procuro o caixa com a cara da derrota. 

O livro, para sacanear mais um pouco, custa oitenta e um reais, mas quem liga para preços quando não se sabe o dia de amanhã? Pode passar no crédito. Não sei se estava lendo muita autoajuda barata, mas esse livro me chocou muito pela qualidade. Preciso comprar um tambor, preciso me matricular na aula de tambor. Adoro fazer matrículas. Comecei a fazer aulas de escrita criativa em inglês, mas precisei abandonar as de piano. Saco. Procura-se patrocinador. 

E agora fico aqui olhando para as paredes enquanto tomo todas as cervejas do Brasil, pensando em como eu digito rápido. Eu deveria ganhar um prêmio, nenhum teclado é páreo, eu esmerilho na arte milenar da datilografia. Mas digitar o quê? "Que bom que você copia Guerra e Paz em 56 minutos, mas agora mostra pra gente do que você é capaz". "Taísa, publique o seu livro, eu vou ajudar", olha, eu não quero publicar nada. Eu quero me trancar no quarto e sofrer por tudo que é impossível agora.

Sabe o que é impossível? Retirar o meu diploma de Jornalista e fazer o meu registro profissional no Ministério do Trabalho. Algumas empresas fazem questão disso, uma fadiga, eu sei. Nunca fui buscar o meu diploma. Lembro muito bem da colação de grau, na qual fui de legging e moto-táxi, mas ir até a secretaria pegar qualquer papel, nunca me ocorreu.

Tudo bem, eu aceito que a vida seja uma eterna burocracia, que existem regras que precisam ser encaradas de frente e decidi ir atrás do meu diploma catarinense. Para o meu choque, arrebatamento mesmo, a primeira via do diploma é totalmente gratuita. Se você, assim como eu, se formou em universidade particular, você deve entender o que estou dizendo. O tempo de espera para retirar o documento: trinta dias úteis. Até lá já contrataram outra loirinha.

Crente de que isso poderia ser resolvido, mandei um email para o coordenador do meu curso. Falo quem sou, quando me formei e pergunto se ele lembra de mim. Ele responde: "Sou velho, mas não tenho Alzheimer, claro que lembro." Achei essa resposta tão engraçada que passei seis minutos rindo, mas se você for pensar, ela não é nada engraçada. Fiquei apenas feliz de alguém ter respondido um email meu. Infelizmente, ele não pode me ajudar, acontece que o diploma precisa da assinatura do reitor,do coordenador, da tia da cantina e esses trinta dias úteis são assim mesmo.

Entretanto, nada disso se transformou em um problema real, pois não sou aprovada no processo seletivo que exigia diploma de Jornalista. Aliás, eu sempre soube que não passaria. Colocaram um papel na minha frente e pensei "Ah, legal, vou escrever um texto, vou mostrar pra eles do que sou capaz", mas não. Na minha frente estava um teste de raciocínio lógico com perguntas do tipo "Se Maria nasceu antes de Ana, que nasceu depois de João, quando nasceu Márcio?". E eu simplesmente não conhecia essas pessoas. E não só isso, colocaram umas questões de matemática, "Se 2 + 2 é igual a 4, calcule a massa do Sol". Deixei boa parte em branco, mas tudo azul, outra vez nós dois. 

E eu até saberia fazer algumas coisas. Foi na regra de três que me safei das reprovações da minha saudosa vida escolar. Não sou completamente retardada, acreditem. Porém, durante o teste, era proibido escrever qualquer coisa na folha, tudo precisava ser feito de cabeça, nenhum risquinho. Fiz décadas de Kumon, juro, décadas, mas mesmo assim, não era capaz daquilo. Até pensei em usar o papel para desenhar uma réplica do túmulo do Napoleão Bonaparte e mostrar assim o quanto era criativa, mas desisti. 

Como decidi ser uma pessoa melhor, não guardo mais rancor, bola pra frente, vejam como os pássaros cantam numa manhã de sol etc. A verdade é que os dias passam e chego até a recusar algumas vagas. Não estou podendo, isso é evidente, mas não tenho estrutura emocional para trabalhar com certas coisas. Ainda acho melhor ser desempregada do que dar um tiro na cabeça, mas essa é apenas a minha opinião. Sabe aquele botão "Denunciar Abuso" do Facebook? Eu queria apertá-lo diante da vida. Nem para a editoria Gatos me convidam. E eu amo gatos. 

Eventualmente abandonarei qualquer ideologia ou sonho profissional e voltarei naquela minha antiga fase de trabalhar em hotel ou loja de shopping. Eu pelo menos tentei, eu vim até aqui. Guardarei os recortes das revistas onde publiquei e mostrarei para os meus netos. Devo pegar o meu diploma de jornalista apenas para vias decorativas e usar a minha formação em Letras para virar professora de Inglês ou Literatura. Acredito que poderei ser plenamente feliz assim, sempre foi o meu Plano B. Eu gosto de ter um plano. O lado bom é que eu nunca quis ter dinheiro. Carro, casa, Macbook, mobilete, bolsa da Chanel, nada. O dia que eu parar de dever para algum banco, talvez o meu espírito seja totalmente destruído. Não quero correr o risco.

Mas mesmo com a ideia de um segundo ofício, eu não consigo encontrar tranquilidade. Eu nunca encontro paz. O meu estado é tão grave que fui num show cover dos Smiths e chorei. Eu chorei de emoção com uma banda cover. Tentei ainda subir no palco para abraçar o Morrissey e o Johnny Marr, mas alguém me impediu. Eu os amo. Como é legal beber e voltar para 1984. Espero poder fazer isso de novo qualquer dia desses. Quem poderia desconfiar que a máquina do tempo nada mais era do que uma garrafa de Jägermeister? 

E até quando você se sente original e única, algo aparece para te fazer pensar, parar de frescura, como diria o outro. Aconteceu de eu ir ao cinema ver 'Frances Ha'. Como os jovens de 27 anos se parecem. Oh, como somos parecidos! Como eu me identifiquei com a personagem. Ela é tão desajeitada quanto eu; enorme e desajustada. Cacete, o melhor filme de 2013, que espetáculo, acho que vou ver de novo. Nunca esqueci que me matriculei no francês para ler Proust no original, a protagonista fala disso. No fim das contas, fiquei na tradução do Mario Quintana, mas nunca abandonei a ideia. Ainda não matei os sete volumes, quem sabe ainda dê tempo. O meu progresso nas aulas é visível, mon cher, vou até mudar de nível. Céus, eu preciso de um clone. 

"For the good life is out there somewhere
So stay on my arm, you little charmer
But I know my luck too well
Yes, I know my luck too well
And I'll probably never see you again
I'll probably never see you again
I'll probably never see you again
I'll probably never see you again..."

5 comentários:

Renan Accioly Wamser disse...

Como me encantei com esse texto, Taiseras! Estou passando por algo semelhante a respeito de viver de freelancers. Às vezes eu penso se deveria fazer museologia, agronomia, biologia ou algum outro curso e tomar outro rumo diferente na vida. Mas aí eu olho para aquelas fotos que já fiz e não consigo desistir de tudo isso.Enfim, suas frustrações tem me acompanhado. Estou aqui torcendo pra você como sempre fiz.
Mas não torcendo com aquele bla bla bla hipócrita. Torcendo porque fiz a faculdade contigo e percorri os mesmo objetivos e sei como é. Mês que vem to ai e a gente vai tomar umas pinguinha e chorar junto ouvindo cover do Smiths.

Taísa disse...

Não vejo a hora da sua chegada.

Johnny Schettino disse...

"O livro, para sacanear mais um pouco, custa oitenta e um reais, mas quem liga para preços quando não se sabe o dia de amanhã? Pode passar no crédito. " Perfeito.

Jonatan disse...

Eu sabia que teus textos eram bons, mas não recordava que eram TÃO bons. Mantenha o fôlego sempre.

Tudo de bom, guria.

carla castellotti disse...

Szabatura, bom saber que você continua escrevendo aqui (no blog) e como freelancer. Vai na maciota, na boa que o lance vira. Vc é boa. E lugar para quem é bom não falta. Bjs!