Os gritos de Idiota! Idiota! Idiota! cessaram e eu me vi sozinha ali


Com o meu mais novo plano de saúde decidi vivenciar a medicina em toda a sua plenitude. Atitude n° 1: frequentar a tal da acupuntura. Não sei se por causa dos supostos benefícios ou se porque começava com a letra “a” no belíssimo catálogo de médicos associados que veio em capa dura. Chegando lá o cara pergunta meu signo. Opa, parece promissor. E o ascendente?

“Taísa, onde você tem dor, onde gostaria de fazer acupuntura?”, pergunta um senhor oriental vestindo camisa xadrez e All Star. Respondo “Na cabeça, pois sou louca, obcecada, ansiosa e quero me matar”. Tá, eu disse apenas “na cabeça”. Decidimos fazer no ombro e nas costas também, afinal os “capricornianos” são muito tensos. “Tire a blusa e deite ali”. Começo a tirar a blusa e noto que estou com o sutiã preto mais rendado do Brasil. “Por que esse vestuário, Taísa?”, pergunto a mim mesma.  Não tinha roupas limpas e precisei ir naquela parte afastada das gavetas em que só se vai no Natal etc. Uma dúvida: será que essa cara é médico? Seria legal se ele fosse, mas já que estamos aqui, tiro a blusa e finjo que aquele sutiã é algo natural; vamos lá, você vai deixar de ser louca com as agulhas na cabeça, a medicina oriental tem tudo para dar certo, você vai ver.

Estou lá, calça jeans, meia e sutiã, recebendo agulhas na cabeça tranquilamente. Não dói. Um leve sustinho, pic, passou, pic, passou, pic, passou. Isso até chegar no ombrinho todo embolotado de tensão. Pic e ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, Pic e ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhh, que dor. Questiono se estamos fazendo tudo certinho e o Sr. Talvez Não Médico diz que hoje vai doer, mas que amanhã estarei ótima etc. Ele para de me picar, coloca um CD da Enya, apaga a luz e me deixa sozinha na sala. Sei lo iê (Não tenho a menor ideia do que ela fala, parece sei-lo-iê), sei lô iê, sei lô ie. Meu ombro lateja, queima, eu quero sair dali. “Nossa, o que você está fazendo aqui, Taísa?” Uma metade da minha personalidade se diverte, levemente horrorizada, como sempre. Sinta a imensidão dessa cilada, sei lo iê, sei lo iê, sei lo iê, deixe essa cilada invadir você, sei lo iê, sei lo iê, sei lo iê. Sinto um ataque de riso chegando, começo a rir livremente, sei lo iê, sei lo iê, sei lo iê, o Sr. Talvez Não Médico abre a porta e pergunta se está tudo bem. Respondo um “sim” por educação, ele olha para o meu sutiã, dá uma risadinha e fecha a porta. Volto a rir, mas agora baixinho, quase chorando. Passa quarenta minutos e ele volta para retirar as agulhas. “Como você está se sentindo?”, uma otária, penso. Digo “bem, mas meu ombro está dezoito milhões de vezes pior do que quando cheguei, não quero criticar o seu trabalho, mas acho que algo deu errado”. Ele volta com aquele discurso de que amanhã estarei ótima etc. Sei.

Saio correndo do lugar e pego um táxi. Eu nunca tenho dinheiro pra pegar táxi, mas quando dou por mim já estou dentro de um. “Querido, precisamos achar uma agência do Itaú”. Taxistas sempre muito simpáticos com aquele papo “mas você é gaúcha, né?”, “Mas você largou Santa Catarina para morar em São Paulo?”, etc. Depois de contar a minha vida com riqueza de detalhes para o taxista finalmente chego em casa, meu ombro está realmente doendo, será que vai ficar melhor amanhã como Sr. Talvez Não Médico falou? Como não confio nesse prognóstico, tomo dois relaxantes musculares, um Dorflex e um Dramim. Rezo para não morrer, não morro, que bom, tenho oftalmologista no dia seguinte.

Acordo com o torcicolo já previsto, tomo um Cataflam e vou para o médico. Chego de táxi, pois sou rica após sacar o dinheiro da comida para andar de táxi. O Sr. Oftalmologista já começa a me chamar por um apelido que não tenho: “Oi, , tudo bem?”. Nesses momentos eu nunca tenho estrutura emocional para me impor e dizer “eu prefiro que você me chame pelo meu nome”, decido pegar leve com a simpatia do Sr. Oftalmologista. “Nossa, Tá, que olhos azuis lindos que você tem”. Lá vem.

Ele diz que tenho uma alergia nos olhos, por isso eles estão sempre pequenos e lacrimejantes. Questiono se não é pelo fato de eu chorar todos os dias, levar uma vida cruel, cheia de rejeições etc. Ele garante que é uma alergia. “Sem sombra de dúvidas: é uma alergia”.  Note to self: falar para o psicólogo que tudo não passou de uma alergia. Lembra que eu alegava alergia quando perguntavam porque o meu rosto estava vermelho e inchado e eu dizia que era alergia? Não era mentira, afinal. Então falamos da minha sinusite, da minha profissão, da capa do Estadão que estou segurando. Ele pergunta se moro sozinha, se sou de São Paulo, se tenho namorado, se me adaptei a cidade, se já fui no Masp, se tenho filhos, se sinto saudades da minha mãe, se é legal ser jornalista, se eu conheço o restaurante x, se eu gosto de dançar, se eu tenho animais de estimação, se eu recebo muitas cantadas. “NÃO, SÓ QUANDO EU VOU AO MÉDICO”, penso. Dou um sorrisinho maroto e, por algum problema de autoestima muito enraizado, decido ser fofa.

Chegamos na parte do exame. Deus, que bom, cansei de conversar. Erro metade das letras, ele pinga o colírio ardido e eu começo a não enxergar nada. “Você já dilatou antes?”, ele questiona. Eu me pergunto se é uma indireta para maconha ou se é uma pergunta sobre o tal colírio. Resolvo responder sim. Enquanto o colírio faz efeito ele me conta da própria vida, como foi difícil fazer Medicina na USP. Ela fala USP com tanto orgulho que tenho vontade de abraçá-lo pela conquista. Ele fala mais algumas coisas, mas não presto atenção. Quando vou embora ele pergunta se pode passar o email pessoal e o telefone, isso caso eu tenha uma emergência oftálmica, claro. Céus, quais são as chances? Galera, pode enfiar o dedo no meu olho que eu tenho um plano. Fico feliz que ele não pede o meu telefone, mas aceito tudo o que ele me dá, afinal, é uma merda levar um fora (vide textos anteriores desse blog). Saio de lá cega e com a receita de uns óculos e o colírio para a alergia. (Quarenta reais o tal do colírio, claro que não comprei.)

São nove e meia e começo a trabalhar às onze, decido comer, adoro comer, “boa decisão, Taísa”. Mesmo cega consigo encontrar uma padaria. Não consigo ler o jornal e nem mexer no smartphone, então me concentro no meu queijo quente e nas pessoas ao redor – humm, que gostosinho esse queijo – escuto um “psssiu” que se repete algumas vezes. Decido ignorar, estou cega e curtindo um momento só meu, não importa quem seja, não quero. Queijo.

O ser humano em questão não se contenta e cutuca meu ombro. Estou no balcão, sentada na banquetinha, balançando os pés e sonhando com o amanhã, quando aquele cutuco abala a minha estrutura emocional. Viro para olhar quem é e, com as pupilas mais que dilatadas, vejo que não conheço o cidadão. Fecho a cara. Ele não vacila e lança “Eu estava te observando e decidi conversar com você, posso me sentar?”. (Vale lembrar que esse senhor cutucou o meu ombro detonado pela acupuntura.)

 “Não, eu estou cansada, gostaria de tomar o meu café em paz”. O cara não desiste. “Eu só queria...”. “Mas não me interessa o que você queria”. Acho que gritei. "Pra que gritar, Taísa?". Nisso o caixa da padaria, talvez o dono, se aproxima e pergunta se está tudo bem. Por alguma razão eu começo a chorar e digo “nada” por medo que ele me expulse da padaria. Eu gosto dali. “Nossa, mas pra que chorar, Taísa?” Já vejo o meu psicólogo dizendo “Quando a pessoa está ansiosa, vê as situações como ameaçadoras, o que a deixa vulnerável e com o comportamento retraído”. Ok.

O cara que queria me passar uma cantada às nove e quarenta e cinco da manhã decide ir embora com a maior cara de ofendido e eu vou embora logo em seguida. Pego a comandinha e vou para o caixa. R$14 por um queijo quente e um café, uau, mas tudo bem. No caixa o senhor que me salvou da fadiga diz que não preciso pagar nada e ainda pede desculpas pelo aborrecimento que me causaram. Que bonito, eu realmente estou cansada de ser desrespeitada nesse lance de cantada/assédio moral.

Corta a cena. Acordo toda suada com a certeza de que desmaiei, mas grande coisa desmaiar, o importante é que estou acordada. Acho que estou com febre, minha garganta está detonada, mas como diria (gritaria) minha querida mãe: “Dor de garganta agora é doença?” e decido, com esse ensinamento materno que levei para a vida, que devo ir para o trabalho. Caminho as quatro quadras que separam a minha casa do meu trabalho e passo muito mal, chego completamente devastada, mas ainda não estou convencida de que é hora de procurar um pronto-socorro. Quando começa a sair sangue do meu ouvido eu finalmente abraço a ideia. Será que vou ficar surda? Vou sentir saudade dos “pssiu” da vida. Nem vou.

Saí da redação e entrei no metrô rumo ao único hospital que eu sabia o endereço. Nesses momentos eu não ligo pra ninguém, não peço carona, faço cara de bunda e me coloco em risco. Esse é o meu jeitinho. Chego no pronto-socorro, passo por uma triagem bacana e espero apenas cinquenta minutos para ser atendida. Acho que é a primeira vez na vida que não sou atendida pelo SUS numa emergência. Tudo era novidade, foi tão rápido, nem vi. O Sr. Com Certeza Médico foi bastante atencioso, receitou um antibiótico, TRÊS injeções e uma visita ao otorrinolaringologista. As injeções são para o meu bem, pensei, vou encarar. O Sr. Enfermeiro, responsável pelas TRÊS injeções, era um rapaz lépido, falava sem parar, perguntava coisas, jogava purpurina nos pacientes, rodopiava e medicava todo mundo ao mesmo tempo. Quando ele se aproximou e começou a me explicar com a língua presa o que iria fazer, fiquei um pouco ansiosa e perguntei se eu precisaria pagar por alguma coisa. Esse lance de plano de saúde é meio inédito na minha vida etc (relembre minha vida no SUS aqui). Ele disse “não” e me abraçou como a legítima integrante da Classe C que agora sou. Decidi fazer amizade e perguntei o que ele gostava de ouvir. Mal terminei a frase e ele “MADONNAVOUNOSHOWVOCÊVAI?”. Falei que eu era uma pessoa mais Britney. Logo após dar a primeira injeção ele achou prudente falar “Ops, I did it again” quando aplicou a segunda. Simpático. Porém, só ouve uma agulha, não sei como foi a logística das injeções, preferi não ver. Infelizmente não posso colaborar com essa parte do relato, apenas sei que tomei três injeções com apenas um “pic”.

Logo em seguida eu desmaiei. Acordei e o Sr. Enfermeiro estava todo preocupado e mandou eu ficar sentada até que a vontade de desmaiar saísse do meu corpinho etc. Percebi que eram três da tarde e eu não havia comido nada. É por esse tipo de atitude que a minha mãe me batia quando eu era pequena. Não posso deixar de dar razão a ela. Toda burrice deve ser castigada. Como eu sou muito pobre e não tenho comida em casa, relembro que a última vez que eu comi foi no trabalho. Do dia anterior. Perguntei onde era a lanchonete do hospital e perguntei se ele queria comer alguma coisa comigo. Tenho essa vontade muito forte de fazer amigos etc. Ele disse que tinha que trabalhar e eu fui sozinha. Tudo muito caro e eu optei por um boteco logo na saída. Rissoles de quatro queijos parece ótimo para quem acabou de desmaiar. Tem maionese?

No caminho de volta (para o trabalho, tá pensando que jornalista é bagunça?) encontro uma farmácia para comprar o indispensável antibiótico. “Olá, quanto custa esse remédio aqui?”, “Você tem o cartão farmácia-não-sei-oquê?”, “não”, “É setenta e quatro e noventa, senhora”, “Tem genérico?”, “Senhora, esse remédio é controlado, para receitarmos o genérico a senhora precisa voltar no médico e pegar outra receita”, “Ah, entendi, vou ver se eu tenho dinheiro”. Nesse momento eu abro a minha bolsa para contar o meu rico dinheirinho. No dia anterior tive que sacar todo o dinheiro que eu tinha no banco (R$79) porque o Estadão resolveu lançar dois débitos automáticos da assinatura no mesmo mês (eu liguei tentando desfazer o mal entendido, mas eles disseram que já estava no poder do banco etc. Como eu não poderia ficar só com R$4 reais na conta – demora até cinco semanas para reembolsarem a droga do valor – decidi sacar tudo num ato de desespero). Contei ali na frente da Sra. Farmaceutica todos os meus sessenta e quatro reais que sobraram depois do rissoles/Coca/metrô da ida e disse “Ah, que pena, não vai dar pra comprar”. Para o meu espanto a farmaceutica pergunta: “Quanto você tem?”, “Sessenta e quatro reais”, “Eu vendo pra você por esse valor”. Cacete, que mulher santa.

O problema é que, muito animada com o desconto, esqueci de reservar R$3 pra pegar o metrô e voltar para o trabalho. Eu poderia ligar (a cobrar) para algum conhecido ir me salvar ou poderia pedir dinheiro na rua. Como eu nunca tomo a decisão mais prática e coerente, decidi não ligar pra ninguém. Enquanto caminhava pela avenida Paulista e refletia em como conseguir três reais facilmente, encontro a super modelo Carol Trentini fazendo umas fotos perto do Masp. Será que eu estaria andando na Paulista sem nem um real no bolso se tivesse seguido com a minha carreira de modelo (leia carreira com sarcasmo)? Sempre achei que fazer faculdade era um bom negócio. (Quando era modelo aos 13 anos dei uma entrevista dizendo “Eu quero fazer faculdade”. Anos depois fiz uma entrevista de emprego – como jornalista – nesse jornal que me entrevistou e não fui contratada, rs.)

Como é bom caminhar pelas ruas sem dinheiro e com o vento batendo nos cabelos etc. Mas, Taísa, onde você gasta o seu dinheiro? Talvez você se pergunte isso, eu confesso que passo dias me perguntando a mesma coisa. Respondo apenas que estou pagando as dividas do passado (antiga faculdade particular etc.), pagando muita gente Brasil afora e o resto morre no aluguel-mais-cretino-de-São-Paulo. Preciso muito me mudar. Queridos leitores, me ajudem nesse meu objetivo.

Entretanto, confesso que compro um monte de revista, livro, caderno, caneta – mas eu não quero viver num mundo onde eu não posso comprar revistas, livros, cadernos e canetas! Fora as padarias e os cinemas. Não compro roupa, maquiagem, bolsa, nada, não curto. Honestamente acho que sacam dinheiro da minha conta e eu nem vejo. Não existe outra explicação. E o Itaú se recusa a me dar um cartão de crédito. Segundo o banco, faz pouco tempo que saí do serviço de proteção ao crédito e o “sistema” simplesmente não consegue autorizar o pedido. “Tente daqui três meses”. E eu nem quero ganhar mais, eu só queria ter a chance de me reorganizar financeiramente. Inserir cara de sofrimento ao ler a última frase. Pego um punhadinho de terra e digo “I’ll never be hungry again”.

Enfim, nada de rancor, voltemos a história. Como eu voltei pra casa? Muito simples, fui até o metrô e falei para um dos funcionários que eu precisava voltar pra casa e não tinha dinheiro. Ele foi na catraca e passou o crachá dele e todos viveram felizes para sempre. No próximo texto falarei sobre a arte de frequentar “baladas” paulistanas completamente sozinha e com o dinheiro contado. Penso em gastar o meu dinheiro com prostitutas, só para imitar o Henry Miller com mais propriedade. Só me faltará Paris e o talento literário. Pelo menos eu tenho plano de saúde. Nossa, bateu uma super vontade de falar sobre o Thomas Bernhard, mas segundo o meu documento do word, estou beirando os dezesseis mil toques, completamente descontrolada e preciso achar alguma disposição para dormir. E o título da postagem anterior já era um lance dele, né? Estpu me repetindo! Apenas leiam “Uma criança”, relato que integra esse livro aqui. Sério, façam isso. Bem melhor que esse blog e talvez mais curto. Nossa, como ela é insegura em relação ao que escreve. Nem sou. Sou sim.

Tem dias que olho para a página em branco do word/Moleskine (me deixa) e quero me matar. Juro que nunca mais vou escrever, vou virar secretária, ou algo que exija apenas memorandos ou coisa parecida. Escrever é muito desgastante, vai me dar um câncer. E você nunca está satisfeito e sempre tem alguém pra dizer que ficou ruim. E eu nem quero mais conversar, mas não consigo terminar essa postagem, acho que a solução é terminar abruptame

3 comentários:

Marcela Quint disse...

Que merda de vida, hein? Chorei de rir. Obrigada.

Carol disse...

Esses dias me vi nessa situação. Justamente na Paulista. Eu não tinha mais que dois reais no bilhete único e do meu cartão do banco não conseguiria nem tirar um "bom dia". Na verdade nele tinham exatos R$ 1,98, fui na expectativa de conseguir complementar os dois reais. Mas não, descobri que naquelas máquinas automáticas, apenas carregam mais de dois reais quando é por cartão. Era o fim. Fui até o funcionário e disse: por favor, deixe eu entrar, se não, vou ter que dormir na rua essa noite. Ah, detalhe, no dia anterior eu tinha ido a livraria e feito, literalmente, uma festa. Na volta, refletindo, pensei que tipo de mulher eu era, que no dia anterior tinha gastado trezentos conto em uma livraria e, no outro dia, não tinha nem três reais para o metrô. Essa é minha vida. My God.

Taísa disse...

Bem vinda a minha realidade, Carol. Bom saber que não estou só! =)